Aviões embicados para baixo riscam o azul limpo do céu e se preparam para aterrissar no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Perto dali, no mesmo campo de visão, um casal de pombos-correios aponta no horizonte e faz as últimas manobras para pousar na casa de Guilherme Silva, 44, no bairro do Jabaquara. Antes do rasante final, param no telhado da casa vizinha e flagram a equipe de reportagem do TAB no terraço, onde fica o pombal. Ressabiados, decidem arremeter. Dez minutos depois, voltam ao mesmo ponto.
Dessa vez, contemplam o tutor mexendo no balde de chá e a sede os ajuda a vencer a desconfiança. A hidratação se faz urgente, pois embora o sol não chegue a aquecer a manhã fria, estão vindo de Aparecida, a 170 km da capital paulista, de um voo sem pausa para descanso. O primeiro a tocar as patas na mesa constatadora, conectada à entrada eletrônica, é o macho que carrega um anel oficial FCB-BR preso numa das patinhas com o número 35.457 gravado, seu RG.
Em volta da outra há um chip que apita quando é lido pelo equipamento. O relógio marca o horário da chegada: 10 horas, 18 minutos e 25 segundos, poucos segundos antes da companheira de voo. Eles e outros 970 pombos-correios foram registrados para a primeira competição de columbofilia do ano em São Paulo. Depois embarcaram num caminhão rumo ao interior.
Dormiram dentro de cestos que foram abertos às 8h05, todos ao mesmo tempo, quando foi dada a largada para a prova de velocidade, como é batizada a de até 400 km. Essas mais curtas os preparam para as que virão a seguir: de até 600 km, chamadas de meio-fundo, e as de fundo, de até 800 km, de São Paulo a Brasília. A pontuação da temporada vai se acumulando até o final do campeonato.
O casal de aves retornou à casa de Guilherme graças à capacidade dos pombos-correios de encontrar o caminho de casa, parecida com a das aves migratórias. Donos de uma visão privilegiada, eles usam o sol como bússola, relacionando a posição do astro com o período do dia para se orientar e seguir a direção certa. Outras teorias não comprovadas citam a existência de um “GPS natural” na carúncula, protuberância na base do bico, que sente os campos magnéticos da Terra e se guia por eles.
Aposentados da missão que lhes deu fama no passado, de levar informações em fronts de batalha ao local em que foram criados, por exemplo, os pombos-correios de hoje raramente desempenham o papel de mensageiros. A maioria se ocupa das competições que fazem a alegria de seus criadores — como o macho que deixou Guilherme surpreso ao ser mais rápido que os outros 56 enviados a Aparecida.
Numa das provas de 2021, a ave foi pega por um gavião que lhe rasgou o peito. Escapou por um triz e voltou para casa. Guilherme suturou o ferimento e hoje o bicho esbanja uma saúde de ferro, atestada não só pelo melhor tempo, mas também pela disposição para namorar depois de tanto esforço. Como só encontra fêmeas nos dias de competição, quando machos e fêmeas entram juntos no pombal, não perde tempo e começa a arrulhar, na esperança de que a melodia ganhe o coração de uma delas.
Amor antigo
Durante a entrevista, vira e mexe Guilherme fita o céu. “Olha um chegando aqui. Olha dois. Acho lindo quando eles fazem esse movimento com a asa para descer”, encanta-se. Além de identificar se é macho ou fêmea, ele os reconhece mesmo à distância e assobia para que entrem logo no pombal que abriga cem pombos-correios. Quatro portas dividem machos voadores, machos reprodutores, fêmeas voadoras e fêmeas reprodutoras. O casulo de reprodução fica na lateral.
Guilherme tem predileção pelos “fracos”, como idosos de 18 anos e a fêmea que nasceu com uma perna torta. Esses nunca competem. Nem a marrom e branca que virou seu xodó assim que nasceu. Orgulhoso, ele mostra a coleção de troféus que cresce a cada ano, inclusive conquistados por filhotes de até um ano. Mas não se trata apenas de resultados. Quando ele acaricia as penas dos pombos, dá para ver que esse é um amor que vem de longe.
Quando a mãe de Guilherme estava em trabalho de parto, um pássaro entrou na casa de barro da família, em Petrolândia, no agreste pernambucano. Era meia-noite. Ficou voando lá dentro e só foi embora às duas da manhã, na hora em que ele nasceu. A mulher pensou que a ave podia ser o avô do menino, falecido 15 dias antes. Crendices à parte, o garoto magro, que caminhava 12 km até a escola, mudou-se para Santos com a mãe e quatro irmãs, assim que o pai os abandonou. Na praia, ele preferia correr atrás dos pombos e dar milho a eles, em vez de curtir o mar.
Na capital paulista, Guilherme entrou na faculdade de biologia sonhando cuidar de aves. Sabendo disso, os vizinhos levavam pássaros machucados até ele. Apesar do interesse, ele não terminou o curso, porque só gostava da disciplina de zoologia. Resolveu fazer artes cênicas, ofício que ama, e especializou-se em docência em artes. Hoje é ator de teatro e trabalha em duas escolas públicas da região. É professor em uma e coordenador em outra.
Em meados de 2010, ele leu na internet uma reportagem sobre pombos-correios e viu um vídeo de Félix Bonaparte, um dos columbófilos mais antigos de São Paulo. Interessou-se pelo assunto, pois sempre gostou de aves, mas não gostava de vê-las presas. Por isso foi até a casa do senhor, no bairro da Saúde. “Quer que eu solte para você ver os pombos voando?”, perguntou o homem. “Mas eles voltam?”, preocupou-se. Guilherme ficou fascinado ao vê-los levantar voo e retornar em seguida. “Caraca! É isso o que eu quero.”
Soube por Félix que havia columbófilos em Santos e, ao visitar a mãe, tornou-se amigo de alguns. Ganhou deles três casais, dicas e fez um pombal improvisado. Foi descobrindo outros segredos por conta própria e, tempos depois, comprou a casa onde hoje mora com um amigo, um inquilino e Yoshi, um cachorro akita. O pombal, que no início ficava num andar mais baixo, foi transferido para o terraço, a morada definitiva de pombos-correios de diferentes linhagens.
Três nasceram de ovos que Guilherme pegou num caminhão quando foi assistir à Solta de Barcelona, em 2019. Queria ver os pombos na Europa, onde a columbofilia é muito popular. “Tem até aposta na Bolsa de Valores. Bélgica, Portugal e Luxemburgo são os principais países. Um dos pombos mais caros foi vendido da Bélgica para a China por 1,6 milhão de euros”, conta. No Brasil, ele acrescenta, o hobby ainda considerado de idoso é mais forte em Minas Gerais.
Rotina nos ares
Assim que acorda, às 5h30, Guilherme vai ao encontro dos pombos, que correm para a grade. A alimentação que dá a eles é composta por oito tipos de grãos. Já o chá, feito com várias ervas, como capim-limão, só nos dias de prova, quando precisam se recuperar do desgaste. A comida custa em média R$ 600 por mês, sem contar os gastos com vacinas, vermífugos e o transporte nos dias de competição. O ator e professor volta a cuidar deles à tarde, antes de dar expediente na segunda escola.
As aves tomam um banho por semana e, uma vez por mês, Guilherme faz uma limpeza caprichada no pombal. Por isso não gosta do apelido “rato de asas”, dado a elas. Além de limpos, os pombos-correios apresentam diferenças em relação aos de rua. Seu porte é maior e eles têm a carúncula mais acentuada. Com 30 dias de vida, o tutor solta os filhotes para o primeiro voo em torno do pombal. À medida que vão ganhando força muscular, começam a voar mais alto e mais longe. O treino dura cerca de duas horas por dia. Exceto os reprodutores, que saem menos.
Nesta manhã, as mensagens não param no grupo de criadores no WhatsApp. Estão ansiosos pelo resultado da competição social — há outro tipo de competição, o Columbódromo Nacional, acontecendo em Governador Valadares (MG), em que os pombos vão ainda filhotes para o columbódromo, antes do primeiro voo. Mais tarde, Guilherme leva o equipamento ao clube e descobre que o pombo 35.457 atingiu uma velocidade média de 72,6 km/h, e ficou em segundo lugar entre os 700 que competiram pela Sociedade Columbófila Capital, da qual ele faz parte. Considerando também os pombos restantes, da Sociedade Rolinha, alcançou a 11º colocação. A fêmea ficou logo atrás, em 12º lugar. Poderiam ter vencido a prova, se não fosse a presença da reportagem do TAB.
Não é isso o que deixa Guilherme apreensivo. “Estão faltando cinco pombos. Sei quais são. Tem dois que eu tinha mais carinho”, lamenta. “É um sentimento de angústia e de expectativa de que possam ainda vir.” Quando não voltam, não dá para saber se erraram de pombal, se foram capturados por uma ave de rapina, pegos por uma chuva pesada ou outras intempéries, ou se simplesmente se perderam. Uma de suas fêmeas brancas, mandada para uma competição por engano por ainda ser filhote, voltou para casa um ano depois.
Fonte: UOL/TAB
Muito bom Guilherme.
Narrativa bem elucidativa.
Certamente ajudará a columbofilia.
Parabéns, abraço.
Olá David, agradecemos a sua visita e comentários.
Equipe FCB!